sábado, 31 de março de 2012

Civilizar a indignação

A todos nos acontece expressar peremptoriamente uma fé mas, por vezes, ela pode cair mesmo mal.
As nossas fés creio que são a maneira que arranjámos de lidar com os assuntos que nos incomodam, as nossas fés são a expressão de como gostaríamos que fosse a realidade -- realidade que nos incomoda!
O comentário caiu na minha conversa distraída como uma bomba, uma agressão. Eu sei que os agressores se estão a defender dos "maus" e sei que os "maus", desprezíveis e perigosos, são criados por uma fé que nem os conhece nem quer conhecer, precisa de assim os ver para se afirmar, para fazer o seu papel de dar segurança.
Eu contava que um amigo ia emigrar e, sem o conhecer nem às circunstâncias, o comentário caiu, peremptório, fruto de uma certeza inabalável, de uma fé: "é porque é preguiçoso, quem quiser trabalhar tem emprego!"
Todos os dias há empresas que vão á falência, Portugal deve estar cheio de preguiçosos, para essas mentes simples.

Aqui fiquei a lidar com a raiva, vergonhoso sentimento, imaginando que ela vem desse comentário. Mas sei que não: todos os nossos sentimentos vêm de dentro, são nossos. Os outros apenas nos oferecem oportunidades para aprender a curar as nossas raivas, ressentimentos, até para aprender a curarmo-nos das nossas fés ;-)
E o bálsamo para as nossas feridas só pode ser o respeito, o amor, a compaixão.
A injustiça dia a dia mais visível nas nossas sociedades ocidentais terá que ser tratada com compreensão, sem violência -- mas terá que ser tratada!
Esta quente Primavera culminará, no dia de S. João, num acesso de impaciência, num confronto de fés. A nossa, a dos 99%, consiste em acreditar que o sistema em que vivemos, nas nossas pseudo-democracias, é injusto, inadequado e se aproxima do fim. A outra acredita que somos todos preguiçosos, "piegas" e que tudo se resolve com mais trabalho, mais austeridade e ordenados mais baixos.
Será o respeito pelo outro, afinal a forma mais básica do amor, o sentimento que impedirá a violência e permitirá a transformação estrutural, nestas próximas dezenas de anos.
Não há "preguiçosos", há gente que ainda não encontrou o seu lugar na vida. Não há gente desprezível, há gente que ainda não percebeu que a vida é entre-ajuda, gente que acreditou, ingenuamente, quando lhe disseram que ela era uma luta, uma competição. Não há maus, há patetas!

Os confrontos de ideias podem ser úteis, da discussão nasce a luz. O importante (porque os tempos que vivemos são importantes) é ir aprendendo a discutir com factos, com respeito, sabendo que a Verdade é paradoxal, transcende a tacanhês das fés, engloba-as! E que é para ser descoberta, não para ser imposta.

Eis uma estatística, que li no "Público": 81% dos europeus não confiam nos políticos. Será a percentagem europeia de "preguiçosos"? -- Deve ser, porque na Grécia são 94%, os que não acreditam nos políticos -- e é por serem preguiçosos que os Gregos estão desempregados, no dizer dos bons alunos da Alemanha e da troika ... A minha raiva vai passar, leitor, demora um bocadinho ;-)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Abril

Quando voltares
Pode ser que não me encontres.

Ficarás algum tempo a pensar
Se terei subido a montanha
Ou sido arrastado pelas águas,
Que é o destino das coisas.

Verás claramente
Que, para estar parado, é preciso estar vivo.
Verás claramente
Que a entropia negativa
É um milagre como outro qualquer.

Não dês muito tempo à saudade, distracção fatal,
E sobe a montanha, escolhendo o caminho.
Se eu a não tiver subido,
Tê-la-ás subido.

A esperança é o farol dos vivos.
Tem que haver uma montanha
Que, do outro lado, tenha flores mais flores,
Regatos mais frescos, vida mais viva...
E (sabes isso!)
Depois de um monte há sempre outro monte
-- parar é morrer!


E deixo aqui dados para sabermos porque é que empobrecemos!

sábado, 17 de março de 2012

"As nações todas são mistérios. 
Cada uma é todo o mundo a sós."
(Fernando Pessoa  in "Mensagem", "D. Tareja")

Para sabermos que o governo português está sujeito a interesses privados e, em última análise, ao capital financeiro internacional, não precisaríamos deste recente "engano" na demissão de um Secretário de Estado.
Sendo assim -- e não havendo censura -- porque é que o governo conserva, em recente sondagem, o apoio dos portugueses? -- Pode ser que se trate de escolher o mal menor, as pessoas não vêm alternativa.
A dívida internacional do Estado português não é apenas da responsabilidade dos nossos governos, autarquias, empresas, cidadãos. A maior parte dos países têm dívidas idênticas e o que está em causa é o acerto do actual sistema monetário e financeiro internacional, que conseguiu criar uma "globalização" a seu favor -- e em desfavor dos povos e das nações.
É tempo de sonhar outras formas de viver em sociedade, de trazer o dinheiro para o seu papel de instrumento de troca, de acabar com a sua capacidade "cancerígena" de reprodução. E é legítimo imaginar como poderia ser. Mais, é o papel das nações, em que "cada uma é todo o mundo a sós". 
A nossa nação lusófona poderia ser uma confederação de países e poderia -- tem recursos naturais para isso -- criar o seu sistema monetário, independente do actual, o qual poderia servir de exemplo ao resto do mundo. Não temos apenas recursos naturais, temo-los culturais e técnicos. Perante o descalabro do actual sistema, inadequado para a vida das pessoas e do planeta, é sensato imaginar outro. E experimentá-lo!

sexta-feira, 9 de março de 2012

Estreou, no Teatro Nacional de S. João, no Porto, o Auto da Alma, de Gil Vicente e aconselham-se os leitores a ir ao teatro, pelo mérito dos actores, da encenação de Nuno Carinhas, com colagens de Teixeira de Pascoaes e outros, com os figurinos criados por Elisabete Leão... e, sobretudo, pela oportunidade da peça nos dias de hoje.

Gil Vicente aproveitou a estreia do Auto da Alma para mostrar a sua Custódia de Belém, que já fez cinco séculos. Era a magna transição do tempo medieval para o moderno e a jóia anuncia o barroco, o ouro do mundo usado racionalmente para cativar as almas para o céu -- sem grande sucesso!

Também hoje transitamos para um outro tempo magnificamente novo, que imagino um céu na terra, o fim paradoxal da dualidade em que o Auto põe a Alma, um mundo espiritual à luz do Sol.
"Todas as cousas com razão têm sazão", dizia o diabo à alma, propondo-lhe que parasse e "Ainda é cedo para a morte; tempo há-de arrepender, e ir ao Céu". E o anjo: "Andai prestes / alma bem-aventurada / dos anjos tanto querida / não durmais / um ponto, não esteis parada..."
Parar. Parar é o erro, é desequilíbrio, não é próprio da vida parar. Apetece ficar na dita sociedade de consumo mas o tempo, a vida, pede que a deixemos para trás.
Gil Vicente não xingava apenas a corte, os seus espectadores. Xingava a Igreja da reforma, Júlio II, patrono de Miguel Ângelo, o papa entre o mundo e o céu -- destino das almas! E propunha à Igreja o papel de Pousada, de descanso da alma caminheira.

Também hoje os tempos são de mudança e "ter é tardar". Hoje o lucro manda sem dono, sem arte, a todos tem por escravos, competindo, sofrendo o seu domínio -- e já sem razão, que outra é a sazão. A peça mais abstracta, mais espiritual, de Gil Vicente, vem a propósito: a Alma tem que sair do Shopping, falsa Pousada, é forçada a procurar o repouso em si mesma, no seu papel de consciência da Terra -- que já se conhece no céu, entre os outros planetas e estrelas.
Sacred Economics, o livro online

segunda-feira, 5 de março de 2012

Política local

O periódico "Notícias de Santo Tirso", a propósito da intervenção do PSD, na última sessão da Assembleia Municipal, pedindo explicações sobre a não concretização do Hospital Privado de Santo Tirso, traz para a primeira página, em letras muito grandes, a pergunta "Onde está o hospital privado?"
Não há artigos, nem jornais, que não tenham, a informar o que escolhem dizer, ou mesmo a sua forma --e tamanho!-- um pensamento, quiçá uma "ideologia", um propósito, pelo menos.
Eu faria a pergunta "Onde está o parque das Rãs?", pergunta que, se tivesse sido feita na Assembleia, não poderia ter tido a resposta de que o contrato tinha sido "resolvido", por incumprimento da outra parte. Aqui a parte que não cumpriu o contrato foi a Câmara, um contrato com as leis do urbanismo da cidade, as quais atribuíram àquela zona uma certa densidade de habitação e, por isso, deixaram aquele terreno para não ser construído... imagino que o que tomei por entulho a ser descarregado lá possa fazer parte, afinal, de uma sofisticada preparação do terreno para uma horta comunitária. Quem sabe se a Câmara, tantos anos depois, dá enfim o assunto por "resolvido" e entrega o terreno aos moradores para estes plantarem os seus legumes? Afinal a pretensão que teve de construir ali uma universidade, anterior a esta de um hospital, foi derrotada por mais do que um tribunal... A Câmara pode ter-se recordado da repetida sentença... Posso ter sido injusto em "posts" anteriores.
Mas, neste, o que quero dizer é que a pergunta do jornalista, "Onde está o hospital privado?", sem mais, deixa no leitor a ideia de que nos conviria um hospital privado, anunciado e não realizado.
Ora, o que nos convém é que o Hospital Conde S. Bento seja público, seja gratuito, eficiente, lesto, acolhedor e que tenha todas as valências necessárias a esses objectivos. Seria nesse sentido que gostaríamos de ver os poderes públicos a "envidar", como dizem, "todos os esforços". Endividar os tirsenses preferindo ajudar as empresas privadas de saúde -- que têm todo o direito a existir, note-se! -- não me parece ser trabalho para eleitos com um programa social-democrata e num país cuja Constituição prevê o direito à saúde.
O assunto da política é melhorar a vida dos cidadãos. Desde que sabemos que os países em que há maior diferença entre os mais altos rendimentos e os mais baixos são aqueles com menos saúde, menor sucesso escolar, maior criminalidade, etc -- sabemos que a política tem a ver com justiça social. E que a saúde pública deve ser o primeiro objectivo da política sabemos desde um célebre estudo da ONU, feito na Dinamarca há bastantes anos: a ONU aconselhou a saúde como o esforço mais importante do Estado, aquele que traz mais depressa o desenvolvimento económico.
Que os nossos partidos sociais-democratas acreditem no monetarismo neo-liberal como caminho para vivermos melhor sugere que a "ciência política" que têm não é o conhecimento científico que se vai atingindo: "ciência política", entre nós, parece ter a ver com a melhor forma de ganhar eleições, com a "ciência" do marketing.