
O Urbanismo é uma arte fascinante. Há quem use a poética da ciência, para a fazer; há quem use a do "bom gosto" (seja lá o que isso for); a do bom senso; a das vias de comunicação; a do "engrandecimento e prestigio da Cidade"; a das "previsíveis necessidades futuras"; a do lucro... um sem fim de poéticas para o mesmo fim.
Creio que qualquer risco deve correr o risco de as englobar todas-- mas não escapamos à nossa subjectividade, ao nosso gosto, em linguagem chã. Porque é de gosto que falamos, quando usamos argumentos racionais! E de crenças, também. Há quem sinta que está a errar e continue porque "é assim que se faz".
O centro da cidade é mais fácil. Restaurar casas no campo, também. É nos subúrbios e nos encontros entre a cidade e o campo que a porca torce o rabo. E no crescimento absurdo das aldeias que já não há. Nestas casas dispersas que nem são urbanas nem rurais nem suburbanas-- e que são o que mais há! -- onde as pessoas parecem gostar de viver, de exprimir, nas chaminés, nas colunas de granito, nas escadas exteriores, a sua alma -- muitas vezes dada de barato a um desenhador barato.
Estragámos a paisagem. Talvez por isso eu a valorize tanto, e à lavoura, ao direito a existir do que resistiu de mundo rural. Defendo-o da cidade, do avanço tentacular e anárquico da cidade. E sei que os citadinos precisam dela, vejo-os a correr ou de biciclete nos sítios mais bonitos, não nos outros.
Vi uma vez uma aldeia muito bonita, para os lados da Trofa, onde tinha aparecido, assustadora, caída do céu do RGEU, uma avenida com cérceas regulares; todas as casas eram vistosas de telhados, volumes, escadas... mas todas obedeciam à poética da cércea regular; todas tinham sido projectadas por um desenhador, todas assustavam os olhos, perdoe-se a sinceridade. Lá no meio da rua estava um terreno vazio, tinha cércea zero, aquele projecto, destoava.
Era o projecto de uma pessoa que pedira a um arquitecto para realizar o seu sonho (não vendera a alma de barato!). Na Câmara repousava um processo com uma mão travessa de espessura, nunca aprovado, apesar de adulterado pelo autor, à procura da cércea.
Uma avenida, uma estrutura urbana central, organizadora do espaço, onde vão ter ruas secundárias, onde fica definido um eixo, com uma escultura ou um edifício público de cada lado... projectada para uma tira entre uma via rápida e uma fábrica que avançou por uma zona verde, com rio em baixo, sem esperança de ter ruas que nela desaguem, com um bairro suburbano num dos extremos do eixo e as traseiras de uma casa de campo, em ruínas, no outro! Porquê, senhores?
Descobri que porque tinha sido imaginada (desenhada?) há mais de 50 anos, quando se fizera o bairro triste donde ela sai da cidade, à conquista do campo. Nesse tempo previa-se que o campo não resistisse (hoje é zona verde com portaria própria de protecção) e que a fábrica falisse, talvez --é a mais próspera da região, por sinal! Mas o que se imagina é a alma do futuro!
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Será que o plano de pormenor das Rãs, que aparece agora aumentado de area de habitação, e que vai ser (tristemente) aprovado pela assembleia municipal nesta quinta-feira, salvo erro, aparece para viabilizar, "justificar", a escolha de um lote municipal roubado a um plano ao lado, o da quinta das Rãs, para instalar um equipamento "colectivo", um Hospital Privado (com outro nome)? Ou será que é esse equipamento ilegal legalizado que vem "viabilizar" e justificar a construção de cerca de 2000 habitações? E porque hão-de todos os novos tirsenses do futuro (cabem lá todos, a continuar este ritmo de crescimento demográfico) ter que ouvir a fábrica?
Seja como for, tão alto designeo, decerto feito a pensar nas pessoas, justifica que a cidade destrua o edifício da Cooperativa dos Agricultores de Santo Tirso, tão bem situado na fronteira entre a cidade e o campo, justifica que ela passe essa fronteira e esbarre de frente com uma casa que viveu, literalmente, daquele campo junto ao rio, um dos melhores da redondeza e que a fábrica foi roendo, roendo como a indústria às gentes da lavoura e ao seu viver; ao rio que a via rápida encanou num tubo de cimento, ao rio que já ardeu (!), de poluído (pela fábrica que agora segue as normas europeias).
É a cércea, a cércea dos Almadas que aqui chega, 250 anos de viagem!
Eu sonho com campos como este ou o da Escola Agrícola, junto ao rio, cultivados aos bocadinhos de horta biológica por centenas de citadinos, nas horas vagas --não sou bruxo, é o que está a acontecer na Europa! E sonho com Hospitais públicos de qualidade superior aos privados, totalmente gratuitos, sem taxas moderadoras -- até a América quer ir por aí! -- li as sondagens, imagino o futuro com os pés no chão!