sábado, 30 de agosto de 2008

Sobre o plano de pormenor das Rãs


O Urbanismo é uma arte fascinante. Há quem use a poética da ciência, para a fazer; há quem use a do "bom gosto" (seja lá o que isso for); a do bom senso; a das vias de comunicação; a do  "engrandecimento e prestigio da Cidade"; a das "previsíveis necessidades futuras"; a do lucro... um sem fim de poéticas para o mesmo fim. 
Creio que qualquer risco deve correr o risco de as englobar todas-- mas não escapamos à nossa subjectividade, ao nosso gosto, em linguagem chã. Porque é de gosto que falamos, quando usamos argumentos racionais! E de crenças, também. Há quem sinta que está a errar e continue porque "é assim que se faz".
O centro da cidade é mais fácil. Restaurar casas no campo, também. É nos subúrbios e nos encontros entre a cidade e o campo que a porca torce o rabo. E no crescimento absurdo das aldeias que já não há. Nestas casas dispersas que nem são urbanas nem rurais nem suburbanas-- e que são o que mais há! -- onde as pessoas parecem gostar de viver, de exprimir, nas chaminés, nas colunas de granito, nas escadas exteriores, a sua alma -- muitas vezes dada de barato a um desenhador barato.
Estragámos a paisagem. Talvez por isso eu a valorize tanto, e à lavoura, ao direito a existir do que resistiu de mundo rural. Defendo-o da cidade, do avanço tentacular e anárquico da cidade. E sei que os citadinos precisam dela, vejo-os a correr ou de biciclete nos sítios mais bonitos, não nos outros.
Vi uma vez uma aldeia muito bonita, para os lados da Trofa, onde tinha aparecido, assustadora, caída do céu do RGEU, uma avenida com cérceas regulares; todas as casas eram vistosas de telhados, volumes, escadas... mas todas obedeciam à poética da cércea regular; todas tinham sido projectadas por um desenhador, todas assustavam os olhos, perdoe-se a sinceridade. Lá no meio da rua estava um terreno vazio, tinha cércea zero, aquele projecto, destoava. 
Era o projecto de uma pessoa que pedira a um arquitecto para realizar o seu sonho (não vendera a alma de barato!). Na Câmara repousava um processo com uma mão travessa de espessura, nunca aprovado, apesar de adulterado pelo autor, à procura da cércea. 

Uma avenida, uma estrutura urbana central, organizadora do espaço, onde vão ter ruas secundárias, onde fica definido um eixo, com uma escultura ou um edifício público de cada lado...  projectada para uma tira entre uma via rápida e uma fábrica que avançou por uma zona verde, com rio em baixo, sem esperança de ter ruas que nela desaguem, com um bairro suburbano num dos extremos do eixo e as traseiras de uma casa de campo, em ruínas, no outro! Porquê, senhores?
Descobri que porque tinha sido imaginada (desenhada?) há mais de 50 anos, quando se fizera o bairro triste donde ela sai da cidade, à conquista do campo. Nesse tempo previa-se que o campo não resistisse (hoje é zona verde com portaria própria de protecção) e que a fábrica falisse, talvez --é a mais próspera da região, por sinal! Mas o que se imagina é a alma do futuro!
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Será que o plano de pormenor das Rãs, que aparece agora aumentado de area de habitação,  e que vai ser (tristemente) aprovado pela assembleia municipal nesta quinta-feira, salvo erro, aparece para viabilizar, "justificar", a escolha de um lote municipal roubado a um plano ao lado, o da quinta das Rãs, para instalar um equipamento "colectivo", um Hospital Privado (com outro nome)? Ou será que é esse equipamento ilegal legalizado que vem "viabilizar" e justificar a construção de cerca de 2000 habitações? E porque hão-de todos os novos tirsenses do futuro (cabem lá todos, a continuar este ritmo de crescimento demográfico) ter que ouvir a fábrica?
Seja como for, tão alto designeo, decerto feito a pensar nas pessoas, justifica que a cidade destrua o edifício da Cooperativa dos Agricultores de Santo Tirso, tão bem situado na fronteira entre a cidade e o campo, justifica que ela passe essa fronteira e esbarre de frente com uma casa que viveu, literalmente, daquele campo junto ao rio, um dos melhores da redondeza e que a fábrica foi roendo, roendo como a indústria às gentes da lavoura e ao seu viver; ao rio que a via rápida encanou num tubo de cimento, ao rio que já ardeu (!), de poluído (pela fábrica que agora segue as normas europeias).
É a cércea, a cércea dos Almadas que aqui chega, 250 anos de viagem! 

Eu sonho com campos como este ou o da Escola Agrícola, junto ao rio, cultivados aos bocadinhos de horta biológica por centenas de citadinos, nas horas vagas --não sou bruxo, é o que está a acontecer na Europa! E sonho com Hospitais públicos de qualidade superior aos privados, totalmente gratuitos, sem taxas moderadoras -- até a América quer ir por aí! -- li as sondagens, imagino o futuro com os pés no chão! 

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Com os pés na terra

Em 1971, há quase 40 anos, tive um professor que nos falou dos artigos científicos que mostravam o crescimento anual do CO2 na atmosfera e do aumento de temperatura que tornaria a vida insustentável. Havia mesmo um cientista convencido de que já era demasiado tarde para salvar a vida no planeta. Naturalmente, como todas as pessoas que tinham tomado consciência da insustentabilidade do abuso dos combustíveis fósseis e da destruição das florestas, falei disso a quem me quis ouvir; só uma opinião pública consciente, em todo o mundo, poderia mudar o rumo catastrófico das coisas.
Lembro-me de me dizerem que não tinha "os pés no chão". Quando uma informação é muito incómoda, quando ela vem pôr em causa as convicções que temos e nas quais baseamos o nosso entendimento do mundo há uma natural tendência para a negação. Em vez de tentar prevenir a catástrofe tratamos de ridicularizar quem a anuncia.  O "desenvolvimento" era identificado com a industrialização e os "ecologistas" tinham que ser identificados com velhos do Restelo que queriam voltar para a Idade Média. Os dados existiam mas não a vontade de os conhecer.
Hoje, no jornal " O Público", vem um gráfico com uma previsão do crescimento demográfico nos países europeus para os próximos 50 anos, divulgado pela Eurostat. Portugal, daqui a 50 anos, terá mais 600 mil almas que agora, crescerá apenas 6% ! Daqui a 50 anos os oficiais 12.800 habitantes da freguesia de Santo Tirso estarão acrescentados de 768 novos! 
Desgraçadamente, a indústria principal deste paraíso ecológico é a da construção civil, é ela que movimenta mais capital e emprega mais pessoas. Poderíamos pensar que ainda tem 600 mil habitantes para quem construir, nos próximos 50 anos, há de se aguentar! Mas é preciso sabermos que, nos últimos 50 anos, ela construíu 4 ou 5 vezes mais que isso! Foi assim que se tornou a indústria dominante no país, aquela que põe governos e tira governos (normalmente não precisa de tirar as Câmaras), assim como nos Estados Unidos da América é a indústria de armamento quem escolhe os presidentes que mais armas comprem, que mais guerras façam! 
Por falar em E.U. da América, a guerra contra o Obama é feita pelos que negam a informação; negam o pico do petróleo, por exemplo, querem ir buscá-lo ao Alasca, área protegida, esquecendo que vão buscar 1 ou 2% do que se consome e que a procura será sempre maior que a oferta. 
Outro número, cuidadosamente esquecido, é o de habitações em Portugal.
Quando, há pouco tempo, os compradores de casas se esgotaram, na Califórnia, e estas caíram para menos de metade do preço que valiam antes, como havia créditos baseados no seu valor acrescentado, não diminuído, esse "subprime" criou uma crise mundial no sistema financeiro; em Espanha e em França o assunto é levado a sério, porque faz doer. Entre nós os empreiteiros não se assustam, limitam-se a negar os dados. Não devem pensar nas pessoas, que quase todas compraram uma casa, e que, quanto mais eles construírem, mais pobres ficarão e terão que continuar a pagar ao banco o que já não vale o que valia quando compraram. 
Deve ser o caso da Herilgar, empresa que desconheço e a quem o plano de pormenor das Rãs atribui quase metade dos 113 mil m2 de habitação previstos. O crescimento da população (os tais 6% em 50 anos) caberá, à vontade, nas casas antigas que vão ficando à venda mas a política que se vende é a do betão, nem que seja para cima da área verde protegida ou da melhor fábrica textil da região, a "Fábrica do Arco", que sofrerá uma pressão urbana para emigrar e levar para o monte os seus operários; se não for para a Polónia. 
Mas eu " não tenho os pés na terra".  Os que têm ainda vão ganhar dinheiro. Dinheiro público que está em mãos cheias de senso comum, vazias de bom senso.
N.B.(26/9/08) Corrigi "40 ou 50 vezes isso" para "4 ou 5 vezes isso"; ter-se-hão construído à volta de 3 milhões de habitações nos últimos anos. De um grande déficit passou-se para um grande excedente. 


quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Estacionamento

Um simpático leitor pediu-me que escrevesse mais neste blog. Este é um lugar onde quem quiser pode escrever, basta enviar-me um e-mail.
Acredito, como os "Pais Fundadores" da democracia americana, no papel central da imprensa livre no melhoramento da sociedade; se cada cidadão expressar os assuntos que lhe surgem e o poder político lhe responder (em vez de o tentar calar!) há lucro.
Aqui vai um pequeno assunto: sei que, quando o nosso mais reputado urbanista, Nuno Portas, projectou (vai para 30 anos!) a circulação pedonal e automóvel da, então, vila de Santo Tirso se preocupou em aumentar a área destinada aos peões, alargou os passeios e fê-los entrar pelos espaços triangulares de alguns encontros de estradas, como a Praça Conde S. Bento, melhorando o usofruto do espaço público; a alternativa, "mais antiquada", seria a de criar rotundas que são espaços inacessíveis, na prática, aos peões. Na altura os automobilistas queixaram-se das vias mais estreitas, da perda de estacionamento; embora o peão tenha sido claramente privilegiado, no desenho, deixaram-se umas baías nos passeios destinadas a estacionamento breve -- alguém que vai comprar qualquer coisa, por exemplo, a salvaguarda do comércio tradicional é uma das preocupações urbanas. Foi assim que ficou uma baía de estacionamento encastrada no largo passeio em frente ao parque onde há uma antiga loja de produtos para consertos domésticos e onde eram os bombeiros amarelos. Estava toda desocupada de carros quando aí estacionei para comprar uns metros de plástico que salvassem uma madeira de ser molhada pela chuva que começara. Mal entrara disseram-me que um polícia estava a anotar a matrícula da minha carrinha e fui-lhe dizer que se tratava de um estacionamento breve. Informou-me que estacionara num espaço privativo dos bombeiros amarelos e, enquanto eu me sentava ao volante imaginando um carro de bombeiros a ser obrigado a parar em segunda fila por minha causa, ele continuou a escrever. Lembrei-me que a sede dos bombeiros tinha saído dali há muito mas, antes que eu falasse já a autoridade me tinha pedido os documentos todos. 
Ficámos ali o tempo suficiente para a chuva apagar qualquer incêndio. Os cofres públicos lucraram, eu perdi mas também o funcionamento do pequeno comércio perde com esta valorização da burocracia: lei é lei, claro que eu deveria ter notado algum sinal que não vi --embora isto não passe de um regulamento, modificável com vantagem para o funcionamento da cidade. Creio que uma das funções da Polícia Municipal é a de velar pelo fluir do tráfego, pedir aos carros estacionados em segunda fila que avancem e não perder tempo com os que estão bem estacionados: ainda caberiam um ou dois carros de bombeiros naquela baía --mas já lá não param, o regulamento está desactualizado... Saberia o urbanista que estava a criar uma fonte de rendimento para os cofres públicos, uma ratoeira para automobilistas incautos? --Pelo contrário, o plano foi feito a pensar nos peões e nos automobilistas, nos cidadãos!