Começámos a pensar, de novo, que a verdade nos possa interessar.
O relativismo, a crença de que a verdade é relativa, de que não existe, de que há "verdades" assim como há opiniões, tem sido o senso comum dos últimos anos mas há sinais de que os tempos estão a mudar.
Todas a civilizações bem sucedidas valorizaram a verdade. Não é preciso ir ao extremo oriente, onde alguém que perdesse a honra, que tivesse mentido ou faltado à palavra dada, chegava ao ponto de se suicidar, de fazer "harakiri".
Ainda no século passado, na nossa região, um burguês que não conseguisse cumprir os seus compromissos comerciais e fosse à falência podia chegar ao suicídio, incapaz de viver com a sua honra ferida. Mas não nos últimos anos, antes pelo contrário. O senso comum tem valorizado quem sabe mentir com eficácia, quem sabe roubar milhões sem ser apanhado.
A Constituição americana, anterior à Revolução Francesa e "fundadora" das democracias modernas, como a nossa, enfatizou a importância da opinião pública, sem a qual não poderia haver democracia.
E pôs os jornais, onde os assuntos se discutiam e os leitores eram também escritores, como um dos pilares da nova ordem social. Esta, como se sabe, era a ordem burguesa, a do novo grupo dominante, gente que lia o jornal. Como se sabe também, "não há direito sem força" e o novo direito era bem diferente do anterior, aplicando-se a todos os "cidadãos", enquanto o anterior era diferente para a nobreza, para o clero e para o povo, cada classe com os seus tribunais (ainda temos os tribunais militares, os militares ainda são uma classe à parte!).
Foi com a intenção de contribuir para a democracia, para a opinião pública, que apareceu este blog, tão mal sucedido no seu propósito! Nem nos blogs nem nos jornais se discutem os assuntos públicos.
Vou propor ao leitor um assunto para discussão que qualquer leitor de jornais, mesmo sem o curso dos liceus, poderá acompanhar e que me parece ser pertinente.
Face aos casos de corrupção que estão a ser investigados, fala-se, à boca cheia, de promiscuidade entre o poder económico e o poder político. Parece haver muitos casos em que as decisões políticas mais convenientes aos negócios são compradas.
Aqueles que encarregámos de gerir a os nossos interesses colectivos, em Lisboa ou nas autarquias, gerem, muitas vezes, os seus interesses pessoais, à custa dos dinheiros públicos.
Isto sempre se passou --mas numa outra escala -- e a minha tese é a de que há uma relação entre estes biliões de euros públicos desperdiçados, entre esta dívida portuguesa em aumento mais que preocupante, e o relativismo.
O relativismo é a tese de que não existe a verdade absoluta, há apenas verdades relativas. Faz parte do pensamento contemporâneo e terá aparecido quando as ciências humanas foram consideradas ciências e nos apercebemos de que as outras culturas funcionavam bem com valores diferentes dos nossos: dentro dos nossos valores, dos direitos humanos, do respeito pelo outro, tivémos que aceitar que o que é verdade numa cultura pode não ser noutra.
A verdade seria relativa. Coisas como a teoria da relatividade ou a teoria da incerteza de Heisenberg contribuíram para lançar a confusão em cidadãos que não são antropólogos de formação nem físicos teóricos.
Perdoe-me o leitor uma ilustração que parecerá uma divagação:
Nos primórdios da física moderna, enquanto os portugueses descobriam continentes e contribuíam para que aparecesse a ideia de que a verdade era para ser "descoberta" em vez de ser lida na Bíblia ou nos escritos de Aristóteles, Kepler arranjou emprego como ajudante do astrónomo mor do Império austríaco. Kepler tinha lido a tese de Copérnico de que a Terra e os planetas conhecidos (menos o nosso satélite) andavam à volta do Sol mas a "verdade" da Igreja, que dispunha da Inquisição, com fogueiras e tudo, era ainda a de que a Terra estava no centro do Universo, que à volta dela girava.
Kepler aceitou o trabalho de explicar matematicamente os movimentos retrógrados aparentes dos planetas mantendo a Terra no centro, no que passou meia dúzia de anos, sem o conseguir, claro, até que o astrónomo mor morreu e ele herdou o cargo e as anotações de anos de obsevação da posição dos planetas; tratou de aplicar a teoria heliocentrica, com órbitas circulares, a esses dados mas descobriu que havia pequenos erros: as órbitas não pareciam ser circulares, antes ovóides e escapavam a uma explicação geométrica. Mais uns anos e, graças a um trabalho de Thico Brahe, imaginou que as órbitas seriam elipses e que o Sol estaria num dos seus focos: foi experimentar e todas as posições, anotadas ao longo de tantos anos, batiam certo: era assim! Imagine-se o extase de descobrir a verdade! Há biliões de anos que era assim, a verdade existia, embora só agora fosse descoberta.
A verdade é complexa, não é aquilo que esperamos que seja, Kepler esperava uma circunferencia e achou uma elipse...mas existe!
Deixou os livros para serem publicados depois da sua morte, embora tivesse vivido no século XVI e XVII, já era um burguês, como nós, lia o jornal, não estava interessado em ser herói, em morrer às mãos da Inquisição.
No tempo de Kepler havia mentirosos, decerto, mas não eram gente "honrada", considerada. Os cardeais que combatiam o heliocentrismo eram apenas ignorantes, acreditavam na verdade revelada em vez de acreditar na verdade descoberta. Mas ninguém acreditava que houvesse várias verdades.
Face à complexidade da ciência actual (a matemática do caos, por exemplo), a verdade parece inacessível. Porém, o facto de a não conhecermos não nos permite decretar que seja inacessível, muito menos que não exista.
É, apesar disso, o que pensa, hoje, o senso comum, que chama fundamentalistas, obcecados pela verdade, aqueles que não aceitam o relativismo como uma verdade absoluta! E há, desde há muito, quem se aproveite dessa preguiça de procurar a verdade: Hitler tinha um ministro da "propaganda", técnica inventada nessa altura, que dizia que uma mentira suficientemente repetida se transforma numa verdade(!). Salazar ou Stálin não andavam longe. Nem os governantes do nosso tempo, que pagam a empresas de marketing para convencer os cidadãos das "verdades" que lhes convêem. E como se repetem!
É de louvar os pequeninos sucessos das investigações policiais que descobriram que há políticos corruptos. É legítimo pôr a hipótese de que a verdade esteja debaixo de toneladas de marketing, de toneladas de betão das obras com que terão encoberto o seu verdadeiro propósito: a percentagem, sob formas diversas, que lhes coube, pessoalmente, por terem tomado a decisão política de as realizar.
E, como não há direito sem força, cabe-nos, à opinião pública, fazer força para que as investigações, anos e anos de esforço, sejam feitas, para que se procure a verdade. Foi de boa fé que se decidiu fazer um aeroporto, uma linha de combóio, uma auto-estrada, um hospital privado, um empréstimo, criar um cargo público? Ou foi para um lucro pessoal ou partidário, de prestígio, de influência ou mesmo monetário? A verdade existe, mesmo que a não conheçamos.
Gostei do seu artigo. Mas pensa mesmo que temos uma "opinião pública"? Pensa que está a contribuir para que ela exista? -- As pessoas querem que haja um bom jogo de futbol ao chegar a casa, ou uma telenovela que as prenda... as "elites" querem que haja uns bons parceiros de bridge ou qualquer coisa que as distraia. "Opinião pública"? Quer- me dar palha para comer?
ResponderEliminarCada um come aquilo que quer...ou que lhe dão...
ResponderEliminarAgora; é verdade que a verdade não é verdade...
Fiquei baralhado com tanta verdade.
A verdade de uns é mentira para outros e vice-versa... La dizia o velho sábio: só sei que nada sei...
Enfim...Quem sou eu?
Portugal vê-se no mar, sujeito a Neptuno. Ou navega ou se afunda no imenso, símbolo do inconsciente, onde, algures, está o magnífico palácio do deus. O seu artigo é terreno, racional, lida com os números, os "biliões desperdiçados". Portugal, imerso em sentimento, vê com alívio que o ladrão escape, pois não suporta prisões. Quando, se, pela mão do deus do Mar, o nosso barco afundado voltar a navegar, todos os ladrões continuarão perdoados, que "outros valores mais altos se alevantam".
ResponderEliminarLá vem a nau Catrineta
ResponderEliminarQue tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.
Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.
Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija
Que a não puderam tragar.
Deitaram sorte à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.
-- Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal.
"Não vejo terras de Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar".
-- Acima, acima gajeiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal
"Avíçaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terra de Espanha,
Areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar".
--Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar.
"A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar".
-- Dar-te-ei tanto dinheiro,
Que o não possas contar.
"Não quero o vosso dinheiro,
pois vos custou a ganhar!
-- Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual.
"Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar".
--Dar-te-ei a nau Catrineta
Para nela navegar.
"Não quero a nau Catrineta
Que a não sei governar".
-- Que queres tu, meu gajeiro,
Que alvíçaras te hei-de dar?
"Capitão, quero a tua alma
Para comigo a levar".
-- Renego de ti, demônio,
Que me estavas a atentar!
A minha alma é só de Deus,
O corpo dou eu ao mar.
Tomou-o um anjo nos braços,
Não o deixou afogar.
Deu um estouro o demônio,
Acalmaram vento e mar;
E à noite a nau Catrineta
Estava em terra a varar.
Abomino a mentira, porque é uma inexactidão
ResponderEliminarObrigado por comrntarem. Fernando Pessoa considerava Portugal o herdeiro da civilização helénica, conhecida por valorizar a razão e por identificar a beleza com a verdade. Considero a mentira inestética mas respeito a privacidade, os direitos humanos em geral. E acho bonito perdoar, "abomino" as prisões, nada resolvem. Porém. na minha "opinião", lucraríamos em valorizar, de novo, a verdade, a sua busca. Pode não estar ao nosso alcance, até pode ser que a verdade seja o ela não existir. Mas não encontro beleza na mentira...
ResponderEliminarPoe exemplo, porque é que o PS, maioritário na legislatura anterior, não deixou passar a "lei Cravinho" contra a corrupção?
Surpreende-me que o assunto que propus para debate não tenha desencadeado uma polémica. A verdade é só uma ou é relativa? A verdade descoberta por um paciente esforço de investigação vale o mesmo que a verdade apregoada pelo marketing político? Ou é inacessível, e, se assim é, é-o por preguiça nossa ou é mesmo inacessível? O leitor tira informação dos orgãosde propaganda polítca, impressos ou nos blogs ou não tira?
ResponderEliminarAcha que deve informar este blog dos erros escritos ou acha que esses erros são "a verdade relativa dele", com o mesmo valor de outras que tal ou sem valor nenhum?
Diga-se, "em abono da verdade", que parece que Hispácia, a filósofa de Alexandria,teria descoberto que as órbitas dos planetas são elípticas, uns 800 anos antes de Kepler!
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