Deixemos agora a máquina a vapor, a técnica, promovida a "ciência da técnica" (tecnologia) e à qual, criação humana que é, se atribuiu o poder criador de transformar o mundo, ou seja, se endeusou.
Foquemos o nosso poder criador, o do Homem, animal social, foquemos o poder criador das ideias. A ideia de que todos os homens nascem livres e iguais em direitos apareceu, depois de séculos em que a existência de privilégios, isto é, de "leis privadas", tinha sido aceite como a ordem natural das coisas, como sendo "a justiça". Apareceu, provavelmente, nas cidades europeias em que a aristocracia, com as suas perucas emproadas, não via o povo que assistia aos seus caprichos, nem sabia da fome, nem de quantos meses levava a fabricar as rendas dos seus fatos de uma noite. Só parecia saber, dos que não tinham privilégios, que eram vis, ou seja, dados a sentir inveja, emoção estranha a quem tinha, por lei, direito a comer do que quisesse. A ideia apareceu, provavelmente, nos espíritos de estudantes talvez esfomeados e revoltados mas, por isso, sensíveis à dor do povo, e, por mais instruídos, mais conscientes. Um mundo em que "A Lei" fosse igual para todos apareceu como uma utopia, como um mito. E foram emigrantes europeus na América quem redigiu a Constituição americana.
Aconteceu. Talleyrand deu a notícia à Europa e, hoje, não há país europeu em que haja quem nasça com privilégios escritos na lei (1). Hoje a Lei Fundamental, a Constituição, veio ocupar o lugar do rei. A lealdade que era devida ao rei é hoje devida à lei.
Entrei há pouco num parque subterrâneo onde uma música barroca lindíssima me acompanhou até ao coche, à minha espera entre centenas de outros, o qual me trouxe a casa mais depressa e com mais conforto que no século XVIII e sem o incómodo dos criados (porque não ver o outro exige um treino de muitas gerações, que nos não é natural, aos burgueses!). Como melhorámos! A saúde, a habitação, a instrução pública não são sequer comparáveis. Porém o mito ainda não é realidade, até retrocedeu: É uma espécie de privilégio nascer num país rico, numa família rica, nascemos iguais em direitos mas nem todos os Estados conseguem dar a todas as crianças a mesma esperança de liberdade. E a fome está a aumentar, no mundo.
Imagino um advogado, cansado, olhando a sua parede forrada de prateleiras cheias de Diários da República, pensando no privilégio que tem em saber, pelo menos mais que o povo, as leis que nos regem e pensando no privilégio do endinheirado que o contratou e ao qual ele conseguirá dar aquela paz de consciência que vem, aos inconscientes, de uma absolvição (pela justiça que há) dos prejuízos que causaram. Imagino-o, lasso, a tentar resumir a Lei: faz o que quiseres desde que não prejudiques alguém!
Mas, agora (e por mais uma boa dúzia de anos!), "Ninguém sabe que coisa quer./ Ninguém conhece que alma tem, / Nem o que é mal nem o que é bem".
E se quem não cumpre a Lei Fundamental fosse quem faz as toneladas de leis que presumem que não sabemos respeitar os outros? E se disséssemos todos aos poderosos deste mundo: "eu sei!"?
Sei que mais de 90% das pessoas são honestas e sei que isso se deve a uma selecção natural, sei que isso de respeitar os outros está nos nossos genes. Sei que "não há direito sem força" e que as leis protegem os poderosos, aqueles, de nós, mais perto, geneticamente, dos predadores primitivos. Sei que o outro merece o mesmo respeito que eu...
... e se eu transferisse a minha lealdade, a que devia ao rei, depois à lei, ao que sei? Sei que o saber humano, a ciência, pode acabar com a fome no mundo, facilmente; sei que podemos, com igual facilidade técnica, parar de transformar o mundo numa lixeira, de destruir o planeta. E sei que, para isso, temos que começar por ter essa ideia, por fazer dela um mito e que transferir a nossa lealdade para aí. Sempre foram as ideias quem mudou o mundo. A máquina a vapor vem depois de a ideia de "descoberta" ter surgido e de haver quem a quisesse experimentar.
Viver em harmonia e em paz com um planeta limpo, gozar as suas maravilhosas paisagens não é uma utopia. Não é um fim, é apenas o passo seguinte do nosso caminhar histórico. Sei que estamos a dar esse passo, que estamos já na revolução do conhecimento.
Também sei que as ideias nascem da prática, como ela delas. A ideia de usar o conhecimento para criar um mundo sem pobreza nasce de o ver a ser usado, com sucesso, para criar privilégios, coisa inútil se o usáramos para criar o bem-estar de todos.
Gosto dos blogs porque o leitor sabe que está a ler alguém a falar em liberdade. Não seria preciso citar a última frase de Fernando Pessoa, rabiscada no leito da morte, ele que gostava das quadras do Bandarra porque sabia do valor de escrever os desejos da alma, os mitos: I know not what tomorrow will bring.
(1) Europa Continental, digo. Nas ilhas como Portugal e o nosso mais velho aliado há umas excepções, quiçá simbólicas;-)
Há um certo optimismo nestas suas palavras... de que se foi possível redigir Leis e Constituições que garantem a equidade perante a lei, também será possível transformar o mundo a partir dessa ideia de justiça social e preservação do meio ambiente... talvez seja possível... Em teoria, é possível... pois sendo mesmo possível tecnicamente, falta apenas a ideia ser posta em prática... e movimentos que ponham a ideia em marcha. Tenho pena, mas não acredito nesses 90%... a desilusão com a evolução genética diz-me que a natureza humana, terá de evoluir várias gerações ainda até ao grau de maturidade ética desejável para conseguir mais essas utopias. Talvez seja uma pessimista... admito... Cumprimentos
ResponderEliminarMuito obrigado por comentar, dá-me a oportunidade de esclarecer o que disse. Como sabe a selecção natural proposta por Darwin é aceite pela ciência e ainda há cientistas que investigam nessa linha. A prevalência de emoções como a compaixão em estudos de populações, desde a Nova Guiné à cidade de Nova York, sugerem que para sobreviver talvez tenha sido mais importante ser simpático que estar fisicamente em forma; a competitividade não tem sido seleccionada ao longo dos séculos. Assim como seleccionámos cães fieis ao dono, com tantas formas e características em tão poucos séculos, assim as sociedades humanas nos foram transformando, a nós, a partir de "lobos", em criaturas decentes.
ResponderEliminarSeria interessante se este livro de Dacher Keltner, professor de Psicologia na Univ. da Califórnia, Berkeley, "Born to be Good" tivesse o impacto que teve "Uma investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações", de Adam Smith, o qual terá influenciado a Psicanálise, a Economia, a Teoria Política e, até, os cientistas que estudaram a evolução. Eu diria que o capital se comporta como tendo vida própria, cresce sem fim como um cancro, arrasa montanhas com pedreiras a céu aberto, arrasa florestas, polui---mas cresce, qual infestante num jardim, a Terra. Move paixões, como esta, que partilhamos, pela liberdade, dirigindo-as contra tudo o que possa parecer "socialista" ou de esquerda, como se pode ver com a pressão a que Obama está sujeito por incomodar o dito capital: seguradoras e farmacêuticas, mesmo na "mouche", coitado!
Não sejamos optimistas nem pessimistas, analisemos!
Não podemos, nem devemos, desistir do Planeta Terra. Mas analisando, torna-se cada vez mais díficil encontrar situações pacíficas, fáceis de se concretizarem e de serem aceites... Este desalento só se desvanece um pouco, com a esperança envolta em novos movimentos cívicos, que se substituem por vezes, em certas tarefas. ás organizações governamentais.
ResponderEliminarQuanto aos 90% de pessoas honestas, talvez seja verdade, mas tambem acrescento que a verdade é muitas vezes subjectiva, o que é verdade para uns, é mentira para outros...
Por último, de facto tambem nos dava jeito um "Obama":)...
Obrigado por comentar. A verdade não é subjectiva, na minha opinião. As opiniões são! Não me recordo onde vi essa estatística dos 90% e a verdade é que fui pesquisar aqui no google e a não confirmei. Tem piada este site com um filme para cada uma das 100 pessoas que encontram uma carteira no chão, identificada: apenas 74% se deram ao trabalho de a levar ao dono (mais mulheres honestas que homens):
ResponderEliminarhttp://www.wallettest.com/
mexer teria razão se dissesse que os erros dependem da nossa subjectividade: pesquisei melhor o teste da carteira e, para o meu grupo etário e sendo branco deu 91% de honestos. Note-se que os pretos são menos honestos porque são mais pobres, os trocos podem dar jeito para uma sopa; o mesmo deve acontecer com os ricos, que podem pensar que têm privilégios, a sua vida ocupada não dá para perder tempo a restituir tão pouco dinheiro. Por outro lado o teste foi nos EUA, país com grande desigualdade social; é provável que chegasse aos 90% na Europa.
ResponderEliminarEdgar Morin escreveu que a natureza humana é cultural: há de haver paises mais honestos que outros! Uma coisa está bem estudada: a pobreza conduz ao roubo, estatisticamente! Se acabarmos com ela ficamos com roubos residuais, mas, claro!, é apenas uma subjectiva opinião ;-)
Também acho que são as emoções positivas o nosso grande capital. Que se pode tornar num motor para a mudança. O respeito, a compaixão e o amor são poderosos e podem redefinir as prioridades de cada um e logo de todos.
ResponderEliminarSão elas (as emoções) que vão conduzir a melhores decisões. Mas a aprendizagem da compaixão e admiração, importantes na capacidade de julgar, embora disponível nos acontecimentos do dia a dia, precisa de tempo. Por isso a informação deve ser adquirida a um ritmo mais lento do que habitualmente acontece (Damásio in University of Southern California ,2009 April 14). Rapid-fire Media May Confuse Your Moral Compass)
Obrigada então pelo texto, suficientemente lento para despertar emoções.