sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A ideologia oficial

Já tivémos um tirano carinhoso, que nos dava pensamentos já feitos, de graça. E que nos ajudava, carinhosamente, a não ter outros, que nos distraíssem: Deus, Pátria e Família, o mais só nos viria confundir!
Hoje também temos quem nos diga o que interessa acima de tudo: Auto-estradas, Aeroportos, Comboios de alta velocidade, novas tecnologias, modernidade. Assim nos alivia da responsabilidade de pensar a "coisa pública"... e nos restitue a responsabilidade de fazer poupanças para a reforma, para a saúde, para a educação. Porque só há verbas para as obras: agora aumentam-se os edifícios das escolas, dos cuidados de saúde (embora nem sempre se acerte onde seria preciso aumentar e pouco se invista no seu funcionamento).
Para "Le Corbusier", nos anos 30 do século passado, o betão era o símbolo da modernidade e apareceu uma espécie de religião, com os seus sacerdotes, o "movimento moderno" (é interessante que, nesse tempo, Fernando Pessoa escrevesse o que o fez ser considerado, hoje, o percursor do pós-modernismo). Em 2010, quando o pós-modernismo já vai longe, o sistema económico definha e a Terra anseia pela verdura perdida, a nossa ideologia oficial é ainda o betão.
Ministros, Secretários de Estado, Presidentes da Câmara, deixam-se fotografar quotidianamente em inaugurações de obras ou em lançamentos da primeira pedra (de betão) porque  é uma paixão, uma ideologia, o betão sendo o deus, a pátria e a família dos nossos oligarcas, a ele dedicam o seu tempo, é natural.
Por isso me incomoda a injustiça de gente que imagina corrupções quando os milhões anunciados para uma obra excedem largamente o preço que ela poderia custar, com outra gestão: os nossos governantes não olharam a meios porque identificam o bem do país com a modernidade, com as obras públicas. Como dizia o outro: " não discutimos a Pátria, não discutimos...". E por isso me incomoda esta polémica sobre as perguntas que os procuradores não tiveram tempo de fazer ao actual primeiro-ministro, então ministro do ambiente; perguntas inúteis porque sabemos o que ele teria respondido: "o Freeport é a modernidade, é o betão, é infinitamente mais importante que a vida de algumas aves numa reserva natural, empenhei-me em que fosse licenciado e tenho muito orgulho nisso!"
Devemo-nos dar por felizes: a ideologia de Salazar referia-se a uma época 800 anos anterior à dele. A ideologia oficial que temos apenas se refere a uma época 80 anos anterior à nossa.
Temos que passar por estas coisas, é "normal". O Brasil está hoje em franco progresso e, ainda há umas dezenas de anos, tinha um governante que dizia: "Quando cheguei ao poder o Brasil estava à beira do abismo; comecei a governar e o Brasil deu um passo em frente!"

6 comentários:

  1. Gostei. Bem escrito. Bem analisado, mas incompleto. Falas-me da ditadura dos ditadores do betão, aldrabões, corruptos. Porém, esqueceste os financeiros, a alta finança que suporta as vigas do betão, também eles vigaristas, assim como os mais GANT's CEOs que aplaudem as obras inacabadas e arrecadam, acumulando chorudas reformas, os dividendos devidos(?).
    AGUARDO NOVA MENSAGEM SOBRE ESTA ESCUMALHA .
    Grande abraço cheio de calor.

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  2. Comentário acalorado, sem dúvida!
    É sabido como a indústria da construção civil é a que tem maior peso no PIB. Também é conhecida a promiscuidade entre governantes e certas empresas que fram chamadas de "empresas do regime". Mas o argumento para continuar estes investimentos na construção -- o de que se pretende evitar falências e desemprego -- tem a sua lógica. Já o não haver um plano para, paulatinamente, pôr essas empresas a fazer "regime" e levá-las a adaptar-se à nova realidade, é inquietante. Não conseguindo fazer a terceira auto-estrada para o Porto nem a ponte de Chelas o governo parece que procurou investimentos que não causassem muita agitação na opinião pública o que nos faz duvidar da bondade de tanto investimento nas escolas que têm menos alunos e na saúde onde é no funcionamento que ele mais se justificaria. Quanto aos financeiros, talvez não tenham uma visão tão curta como os governantes--mas certamente que aproveitam, como podem, a situação. O peso da construção na nossa economia é um desequilíbrio que terá consequências desastrosas.

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  3. burro que não gosta de palha10 de agosto de 2010 às 09:20

    Voçê está-se a opor ao senso comum, que o que quer é que se façam obras, não percebe que haja limites para os dinheiros públicos. Ninguém lhe vai ligar nenhuma!

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  4. O meu amigo burro já deve ter percebido que há uma diferença fundamental entre o senso comum e o bom senso. Na prática o senso comum está umas décadas atrasado em relação ao bom senso.
    Quanto mais depressa o senso comum chegar ao bom senso, melhor! Uma pessoa com bom senso prefere ter serviços médicos de graça e de qualidade a tê-los num edifício muito moderno, muito lindo, mas bem pagos e com listas de espera. Uma pessoa que se deixe levar pelo senso comum prefere ter um edifício novo para a junta de freguesia a ter a água e os esgotos mais baratos. O nosso trabalho, amigo burro, é ajudar as pessoas a ver a realidade... sabe que, hoje, o Jornal de Notícias diz, na capa, que só 4% das obras públicas vão a concurso? Ou seja 96% são adjudicadas directamente aos construtores civis amigos, sem problemas.

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  5. É, certamente, curioso, que as pessoas aceitem perder regalias sociais e o crescimento da divida publica, a favor da construção desenfreada entregue sem concurso publico. A propaganda deve ser eficaz.

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  6. Entre nós a indústria de construção civil tem o papel da indústria do armamento nos Estados Unidos da América:
    http://sorisomail.com/email/63379/incriveis-palavras-de-um-soldado-americano.html

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