Hoje senti a sombra do “velho abutre” (não é um arrepio, a sensação, é um desânimo pesado, escuro e frio).
Para os gregos antigos verdade e beleza eram a mesma coisa. As contradições entre as diferentes poéticas, ou seja, os diferentes processos de criar arte, são as contradições sociais, as lutas políticas, a verdadeira origem das “ideologias”.
O velho abutre, que Deus tenha, via beleza no “viver habitualmente”, rural, da Idade Média, antes do Renascimento, antes do poder da burguesia, que, por sinal, ora se começa a extinguir, neste século XXI.
A poética da dignidade humana, da carta dos direitos humanos, com que afugentámos o velho abutre, tem a ver com a liberdade como valor e com o respeito pelo outro, com o cuidado de que a nossa liberdade não vá prejudicar ninguém. Esse cuidado, manifestamente, faltou ao grupo dominante na nossa sociedade e a poética do 25 de Abril está em risco de perder para outras, daí a sombra, o seu pairar.
A noticia que iluminou isto foi a de que o vice-presidente da bancada do PS lançou a suspeita de que Manuela Ferreira Leite tenha tido acesso, três meses antes de nós, às escutas telefónicas entre José Sócrates e Armando Vara; isto por ela ter acusado, há três meses, o primeiro ministro de ter mentido no Parlamento, ao garantir que nada sabia sobre o negócio da TVI.
A liberdade de continuar as negociatas invocou os mecanismos de respeito pela liberdade, privacidade, esqueceu que foi com a verdade que a nossa poética se impôs à medieval!
Se nos não demarcarmos dos oportunistas, chamemos os bois pelos nomes, outras poéticas substituirão a nossa.
O velho abutre é sábio e alisa as suas penas
A podridão lhe agrada e seus discursos
Têm o dom de tornar as almas mais pequenas
Sophia de Mello Breyner Andresen