quinta-feira, 28 de abril de 2011

Há uma geração a desaparecer: vi, no "Público", que, ontem, aos 93 anos, Vitorino Magalhães Godinho, um homem livre e sério, historiador e combatente de mitos, ele mesmo um personagem já mítico da nossa democracia, faleceu. Era um dos últimos "republicanos históricos", a sua investigação rigorosa incomodava (a verdade pode fazer isso!) e Salazar pediu (ordenou?) à Faculdade de Letras de Lisboa que lhe não renovasse o contrato; só voltou do exílio com o 25 de Abril. Em entrevista de 2005 disse que "não se chegou a construir uma democracia" e, em 2009, que "a nossa classe política é mais do que lamentável": factos.

Quando, em 510 a.C., os atenienses ganharam coragem, subiram à Acrópole (onde ainda não existia o Parténon) e derrubaram o tirano Hípias, que lá se instalara, a "gente comum" (demos), ficou com o poder (krátos) nas mãos. Receosa de que ele fosse parar de novo às de um tirano ou às dos mais ricos ou às dos aristocratas, que eram os militares do tempo, os atenienses mandaram vir, do exílio, Clístenes, que sempre se opusera às leis de Sólon, antes da chegada do tirano, e, depois, a Hípias, que o exilara; pediram-lhe que criasse as leis para que houvesse democracia --a primeira!

Clístenes era um aristocrata exilado e, desejoso de voltar à Pátria, ajudou-os. O que criou era uma democracia directa, a lei obrigava os cidadãos a participar em todas as decisões.

O sucesso da civilização que se seguiu ainda brilha na memória da nossa.
O Portugal democrata não foi prudente no uso que deu aos recursos --caíu numa oligarquia e numa crise financeira e política. Coincide com a maior crise do sistema económico mundial, uma de que só sairemos com uma nova estrutura (isto não será consensual mas já é pacífico dizer que o sistema económico mundial não é sustentável).

Em 1923, numa crise semelhante mas apenas o prenúncio desta, a Revista Portuguesa (nºs 23/24) entrevistou o poeta Fernando Pessoa (peço ao leitor que não confunda o conceito de "aristocracia" de F. Pessoa com a "elite nobiliárquico-eclesiástica" a que V. Magalhães Godinho atribuía a não modernização do país, no tempo de Salazar):

"Pergunta: Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos — político, moral e intelectual?

"A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico. Todo o povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente. A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo.
O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita — como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova — o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima).
Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si-próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise.
As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise política é o sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral é que desde 1580 — fim da Renascença em nós e de nós na Renascença — deixou de haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga portuguesa, que é mais moderno que o português e é o resultado de estarem interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência disto.
Respondi, creio, à sua pergunta. Se V. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer. "

in Revista Portuguesa, nº 23-24. Lisboa: 13-10-1923; entrevista ao poeta Fernando Pessoa

4 comentários:

  1. "Foi neste vácuo de si-próprio que o português abusou de civilizar-se..." Pois aí está uma grande verdade. Muito actual esta entrevista ao poeta. Já toda a gente percebeu que este sistema económico mundial é insustentável, mas faltam alternativas sustentáveis com provas dadas. É o próprio paradigma a ser alterado... e isso ainda vai requerer mais tempo de assimilação colectiva, até ser inevitável mudar-se ou ser imposto... até lá, cada vez mais sacrifícios vão ser exigidos aos Portugueses (e não só). E quem esbanja os recursos continuará impune... Cumprimentos

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  2. Obrigado por comentar.Estamos em plena transformação, no mundo, é a "Nova Renascença" de que fala Pessoa, os tiranos estão a ficar encurralados e vemos os progressos dos povos na televisão. Estes querem democracia, a autêntica, a directa! E isto do Internet será o instrumento disso. As novas leis serão criadas, não existem ainda, por novas não terão "provas dadas" quando forem experimentadas. O cosmopolitismo permitirá que haja indivíduos em Portugal e, porque é da nossa natureza sermos universais, os portugueses, melhor, os lusófonos, contribuiremos certamente para as novas regras com que viveremos. O Brasil me parece seja o primeiro construtor de "alternativas sustentáveis com provas dadas" mas estamos em tempos de mudança: tomemos consciência disso e deixemo-nos de imitar o estrangeiro e de procurar a segurança que não há! Obrigado, mais uma vez, pelo seu comentário.

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  3. A pançuda aristocracia portuguesa defende a sua posição privilegiada: - vende os "dedos" para poder continuar na posse dos "anéis".

    Mas, sem "dedos" para trabalhar, o povo não pode sustentar-se...

    E, quando os ricos não tratam da saúde dos pobres, os pobres tratam da "saúde" aos ricos...

    Afinal, de que vale ter ricos quando estes nem sequer servem para tratar da saúde dos pobres?

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  4. Obrigado por comentar, embora não saiba se entendi o que escreveu!
    Aproveito para dizer o que penso da saúde. Ela é, antes do mais, responsabilidade nossa: é preciso evitar a toxicidade, mesmo de alimentos como o açucar ou a carne; é preciso evitar o stress, andar a pé... em boa verdade é preciso ser feliz (responsabilidade nossa!)para ter saúde. Da mesma maneira a saúde económica de cada um de nós e do país é nossa responsabilidade: é preciso evitar os gastos desnecessários, procurar os trabalhos para que tenhamos jeito -- ser conscientes!
    Depois disso, ricos ou pobres, ajudaremos naturalmente quem estiver arrasca: é o destino de quem fala a nossa língua, somos assim!

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