segunda-feira, 27 de junho de 2011

Uma censura à Câmara de Santo Tirso

 Louvei aqui, há mais de um ano, a coragem que a Câmara de Santo Tirso mostrou, ao encomendar, a um dos mais caros artistas plásticos contemporâneos, o escultor e arquitecto A. (o anonimato é marca da sua poética), uma instalação temporária, "Ceci", que usa um ready made, uma grua gigante, obra que trouxe à cidade mais notoriedade e mais visitantes que os que já tinham trazido todas as esculturas do nosso museu ao ar livre. 
Descrevi, na altura, o artista como um funcionalista que exacerba a função estética; para ele a função da Arte é produzir emoções artísticas e essas emoções estão no cerne da espiritualidade humana. A Arte, para cumprir a sua função, segundo ele, tem que ser rigorosamente inútil, efémera e anônima.
"Ceci", Arte Contemporânea rigorosamente inútil, uma grua em risco de ser posta a funcionar, depois de tantos anos parada, a servir de símbolo da obra pela obra --da Arte!
Entretanto os tirsenses foram-se afeiçoando de tal maneira à obra de Arte que pediram à Câmara que a não retirasse, como estava previsto, sendo ela uma instalação temporária e logo uma de um autor que tem o culto do efémero (lembro-me de A. descrever a emoção artística, logo espiritual, que sentia diante de uma xícara de café saído da máquina, exactamente porque sabia que o ia beber, ou seja, estava consciente do efémero da emoção -- e bebia-o de um trago!).
Ora a nossa Câmara é muito sensível à opinião pública e desejava manter a obra no seu lugar cimeiro na cidade, como era o desejo dos tirsenses. Depois de difíceis negociações com o autor, conseguiu convencê-lo a permitir que "Ceci" continuasse, desde que toda a praça fosse transformada num estaleiro rigorosamente inútil, o qual criasse nos tirsenses "o delicioso incómodo da emoção artística" que A. sentira, fascinado, durante o "Porto, Capital Europeia da Cultura". Foi assim que a Câmara destruiu o jardim e fechou ruas, com o aplauso agradecido dos tirsenses, que apreciam a beleza da sua cidade.
Quando tirei esta fotografia, há alguns dias, de manhã cedo, um dos figurantes que se preparavam para começar mais um dia de Arte ofereceu-se para me deixar entrar, vendo o meu interesse. Agradeci, claro, mas ele disse-me que, depois de me introduzir na obra, teria que ir procurar novo emprego! Percebi que a Câmara mantinha o estaleiro oculto do público para que a instalação artística fosse "rigorosamente inútil", para que nem para ser apreciada servisse, ultrapassando, assim, A. na sua própria poética!

Ora, leitor, os taipais estão a ser retirados, a instalação temporária chega ao fim! Prevejo mesmo que "Ceci", o ready made feito com uma grua gigante, acabe por não resistir aos tempos de austeridade que por aí vêm e que a grua seja usada para recuperar o cinema, deixando de ser uma obra de Arte, "rigorosamente inútil"!

Daí a minha censura à Câmara. 
Depois de tão louvável sacrifício económico em prol da Arte, eis que Santo Tirso se arrisca a perder o seu símbolo central. E para quê? Para fazer uma sala de espectáculos? Que emoções estéticas trará tal banalidade, a realizar-se, que visitantes poderá tal desistência trazer?
"Ceci" não é uma grua: é um direito adquirido dos tirsenses, os quais lutarão, na rua, se necessário for, para que a Arte continue a impor-se, à cidade e ao tempo!

3 comentários:

  1. :))Se não fosse tão tragicamente verdade, seria divertido o post...(mas não deixa de estar muito bem escrito :)) Era preferível ficar com a escultura em exposição semi- permanente... com a ilusão ou esperança da obra a fazer do que a desistência, retirando a esperança de alguma vez vermos concluído a "inútil" sala de espectáculos... salva-se a enorme uitlidade funcional(?) e estética(?) da praça... vá a gente perceber...
    A rotunda, quem vai para Guimarães que essa sim parece-me uma exigência funcional prioritária, também me parece que não vai acabar feita. Em vez dessa ficamos com a outra rotunda concluída perto dos hipermercados que é uma completa aberração e a meu modesto ver... inútil e perigosa...
    Abraço

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  2. Portugal tem um milhão e setecentas mil habitações desabitadas. A obra pela obra, sem os medíocres critérios de utilidade ou de economia tem sido um desígnio nacional. Ao fazer uma obra que simboliza a independencia da Arte em relação à lógica economicista, uma grua rigorosamente inútil no centro da cidade durante anos, Santo Tirso criou um símbolo nacional, nada menos!
    É por isso que, se a grua passar a funcionar e servir para reconstruir o velho cinema, depois de tantos anos parada, nos sentiremos legitimamente lesados no valor mais importante: o símbólico!

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  3. burro que não gosta de palha29 de junho de 2011 às 02:18

    Por uma vez a sua mensagem faz sentido: o artista que se lembrou de colocar uma grua inútil no centro da cidade, durante vários anos, sobrepondo-se ao Tribunal, criou, de facto, um símbolo de um Concelho -- e de um país! -- transformado em estaleiro de construção civil, investimento não reprodutivo que, aliado à ajuda estatal às grandes empresas, à corrupção e aos "boys" milionários, é a grande explicação do endividamento.

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