quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A Fada Madrinha

Era uma vez uma fada madrinha que só tinha seis afilhados, uma menina e um menino, uma mulher e um homem e um velho e uma velha.
A velha nada lhe pedia para si, pedia juízo e saúde para os netos e a fada dava, tendo o cuidado de não dar juízo demais, não concordava com a velha, muito juízo não faz bem às crianças.
O velho pedia-lhe juventude e a fada era parcimoniosa, também, muita juventude não convém à velhice.
A mulher pedia-lhe beleza, que a fada dava, mas receosa pela afilhada—a beleza em demasia é fardo grande!
O homem pedia liberdade e força física e a fada sofria por ele não pedir responsabilidade e força espiritual.
A menina nada lhe pedia, agradecia tudo. 
E o menino só lhe fez um pedido, que a deixou receosa, também. Pediu-lhe o dom da escrita, a arte de contar histórias de encantar.

Enquanto pensava se lhe concederia o dom, a fada contou-lhe uma história, na esperança de o fazer desistir da escrita, que lhe parecia coisa perigosa para as crianças.
Contou-lhe que, num reino longínquo, morava um lavrador que não sabia amanhar a terra e passava o tempo a ler e a escrever. Pensava ele que haveria de vender livros e que compraria o pão que não semeava. Escrevia de dia e tinha falta de papel, de tinta e de comida, abundância de dor. Mas o homem acreditava que a dor é a semente dos livros, que é preciso sofrer muito para escrever bem. Portanto escrevia, regava a sua dor, que ia crescendo, crescendo—mas não dava frutos.
Um dia meteu-se a caminho da cidade, à procura de um editor que lhe saciasse a fome.
Mas a dor que o lavrador escrevia nada dizia aos citadinos que compram livros—assim pensavam os editores que visitou. Houve um que gostou de o ler, porém, e lhe ofereceu uma boa refeição em troca dos manuscritos. Faminto, o escritor aceitou.

A fada, aqui, hesitou muito, enquanto o menino pedia que acabasse a história. Deveria dizer-lhe que o lavrador morreu de fome? Que o editor ficou rico com o que publicou?
Ou que o lavrador foi trabalhar nas obras e o livro nunca foi publicado?
A fada olhava para o afilhado cheiinha de compaixão e decidiu acabar a história assim:
O lavrador disse ao seu benfeitor que aceitava a proposta mas que lhe fazia outra: se o livro se vendesse bem, o editor dar-lhe-ia de comer todos os dias e ele continuaria a escrever para ele. Nada tendo a perder, o editor aceitou.
Agora, restava à fada o mais difícil: para que o lavrador continuasse vivo, ele teria que ter o dom da escrita, aquilo que o menino lhe pedia. Se ela desse ao afilhado o dom da escrita, iria ele para uma vida de pobreza, ele que tanto queria escrever?
A deontologia das fadas não lhes permite interferir no que as pessoas fazem com os dons que lhes são dados. Podia dar ou não dar...
Decidiu dar e, também, um bocadinho do juízo para os netos que a velha lhe pedira—na verdade dava mais ao menino que aos netos dela. Mas isto a fada não contou. As fadas não têm que se justificar aos seus afilhados, já se sabe.

2 comentários:

  1. burro que não gosta de palha4 de agosto de 2016 às 13:32

    Falta dizer que um escritor com juízo não presta! O menino morreu de fome, apesar das precauções da sua fada madrinha.

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  2. Acho que tem razão, burro, como sempre! Mas não sei como foi a vida do menino. Traduzi isto de um um texto de escritor ligado ao IRA, um irlandês que morreu em combate e que, creio eu, pretendia defender a tese absurda de que um escritor pode ter juízo e talento ao mesmo tempo; é que os ingleses tomam os irlandeses sempre por loucos, especialmente os que escrevem. E, vendo bem, querer convencer os ingleses a sair da Irlanda, escrevendo, é seguramente louco.

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