domingo, 26 de agosto de 2012

Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

01.04.1931 Fernando Pessoa

O primeiro dever do "poeta", de quem escreva um texto, é o de escrever bem. E, para escrever bem, não basta não ser expontâneo, é preciso "fingir completamente". Só assim os leitores podem sentir "dores que eles não têm". 
Um texto mal escrito nada acrescenta aos que lêem. Nada sentem ou sentem dores que têm. E um texto mal escrito não comunica, claro, o que não pode, com ou sem arte, "a dor que deveras sente".
Nem consegue fazer o verdadeiro papel da escrita, a alquimia que liberta a dor em arte, uma dor que se sente mas não dói, encanta. 
O poeta é um cozinheiro, transforma dores cruas, intragáveis, no prazer de as ler.
Um texto mal escrito é um pecado, um desperdício de dor.  Um nojo para os que o lêem, uma vergonha para o cozinheiro. 
Ai do escritor que, na ânsia de ser autêntico -- que nunca é -- não prova a comida que manda para o texto! Recebe-a de volta, crua, sem tempero -- recebe, de volta, "a dor que deveras sente".
E assim dá corda ao combóio, "que se chama coração".

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