Mesmo no centro da arena, no fim do espectáculo, de braços abertos, o palhaço rodara sobre si mesmo a grande velocidade. Porque queria ver todos a quem tocara de uma dúzia de maneiras; queria ver os outros a quem criara uma visão. Ver, ao mesmo tempo, todos os confrontos com todas as ilusões que a vida tem para dar a cada um. Ver que se entretinham, em vez de se abismarem com o absurdo de tudo.
Rodou, tropeçou nos seus sapatos enormes, e caiu de borco, com a cara no chão de terra. Via, agora— e sentia na boca! — o pó da terra, como acaba o entretenimento da vida.
Os aplausos misturavam as pessoas, que o tinham sentido de uma dúzia de maneiras, numa massa uniforme e ruidosa. A queda acidental fora interpretada como o final do acto e os aplausos eram sinceros.
Retratara todas as paixões com que a vida nos entretém. Começara com o encanto de ser gente, o corpo, o prazer de funcionar bem com ele, as maneiras. Saltou para o prazer de ter coisas, de amealhar, de ter, até, outras pessoas, o entretenimento que é procurar a segurança. Daí para o prazer de conversar, de estar informado, de ler o jornal…
Havia pessoas que se sentiam mais retratadas que outras, em cada cena que ele fazia.
Passou para os que se entretinham com a sua casa, que a decoravam, até com genealogias. Depois os que criavam, pintavam, educavam filhos. E logo os que se alienavam no trabalho, nas suas rotinas, seus esforços, suas canseiras.
Só por não sentir e ter sentido tudo isso o podia mimar tão bem, mostrar que se entretinham na vida como ali, no circo, para não ver o que ele via agora, de tão perto: o pó que está no fim de tudo.
(Dizem que o sentido da vida é a própria vida, mas é o mesmo que se nada dissessem).
Mostrou-lhes o relacionamento, a paixão do outro. E o sexo, e a paixão do poder. Mostrou-lhes os que faziam filosofia para se entreterem, ou procuravam Deus. E os que faziam uma carreira, se distraíam gastando o tempo a ganhar as honrarias por vir.
Mostrou-lhes os que se gastavam nos amigos, até no amor à humanidade. E, por fim, mesmo antes de cair, fora sublime porque mimara o secreto, o fundo da alma, os medos escondidos que se não podem mostrar, a bondade mesmo, a que se esconde –mas que também entretém, também serve para esconder o pó.
Nada disso, que é a vida, o palhaço levava a sério, de tudo fazia pouco, como se houvesse outra coisa, que fosse séria, que fosse a vida.
E caiu no pó da arena, indiferente aos aplausos. Já conhecera tudo e nada o movia. Caiu cansado, cansado de entender que não entendia.
Actuara porque era palhaço, como as formigas carregam provisões porque são formigas. Não, não era uma cigarra, era um palhaço.
Enquanto a boca saboreava a terra e os aplausos se apagavam devagar, levantou-se para outras terras, onde enfim percebesse o sentido das coisas, que dizem ser simples. Deixou ficar o palhaço no chão, e as pessoas, intrigadas, não deixaram de sair, os seus entretenimentos não lhes davam tempo para ficar.
Muito bonito. Doloroso.
ResponderEliminar